sexta-feira, 21 de novembro de 2008

MARCEL DUCHAMP - 120 anos depois


Normandia, na França, o menino Marcel Duchamp. Depois de abandonar a pintura aos 25 anos - base de sua formação artística, o jovem viria a se tornar um dos mais importantes artistas do século XX, questionando conceitos até então estanques.

BIOGRAFIA - O jogador e seu tabuleiro

Duchamp soube ser um jogador irônico e habilidoso, e mesmo produzindo poucas obras, freqüentando pouco os museus consagrados, foi próximo de grandes nomes e influenciou as figuras-chaves da arte do século passado, colocando em xeque uma visão até então ingênua da arte e do artista. André Breton, um dos poetas do surrealismo, por exemplo, não só o considerou o homem mais inteligente do século XX como “para muitos, o mais incômodo”.
Próximo à pequena cidade de Blainville, na Normandia, Marcel Duchamp cresceu numa daquelas famílias de classe média, amantes da arte. O avô materno era um agente navegador que se dedicava à gravura e à pintura. A mãe contentou-se com pinturas de serviços de porcelana, posto que não era das mais habilidosas. Mas de qualquer modo estimulava a expressão artística dos filhos. Tanto que os irmãos mais velhos de Marcel, Gaston e Raymond (que mais tarde assumiram os pseudônimos Jacques Villon e Duchamp-Villon, respectivamente) conheceram notoriedade. Aos 17 anos, Marcel foi morar em Paris e lá trabalhou como cartunista - com desenhos, claro, provocadores.

A pintura, base da formação de Duchamp, foi abandonada logo cedo, aos 25 anos. Entre as muitas razões, Duchamp anuncia um certo cansaço em relação à convivência com artistas, mesmo motivo que o levou a gostar mais do jogo de xadrez que das relações que a arte pressupõe. Em 1912, porém, um ato isolado acabou por desestimular de vez o jovem Duchamp. O quadro “Nu Descendo uma Escada (N°2)”, que dá um passo adiante do Cubismo, em que a figura central mal parece humana, quando mesmo nua, foi recepcionado com frieza pelo Salon des Indépendants - do círculo cubista - e retirado antes da abertura. “O Cubismo não tinha ainda dois ou três anos de existência, e eles já tinham uma linha de conduta absolutamente clara, estabelecida, prevendo tudo o que deveria acontecer. Eu achei muito ingênuo. Isso me esfriou a tal ponto que, como uma reação contra tal comportamento, da parte de artistas que eu considerava livres, arrumei um emprego”, disse Duchamp numa entrevista.

Preferências

O trabalho não durou muito. Até porque o empregado não era muito afeito a essas convenções burguesas. O crítico Pierre Cabanne, no livro “Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido”, numa extensa entrevista com o artista, e de onde a declaração acima foi retirada, pergunta, logo de início, pelo que Duchamp pode se considerar satisfeito. O entrevistado, firme, responde: “primeiro, ter tido sorte. Porque, na verdade, nunca precisei trabalhar para sobreviver. Considero trabalhar para sobreviver um pouco imbecil do ponto de vista econômico”. Foi solteiro inveterado, casou-se uma vez, por seis meses - e na mesma entrevista a Cabanne, disse ter compreendido, logo cedo, “que não precisava embaraçar a vida com tanto peso, tantas coisas a fazer, tais como esposa, filhos, uma casa de campo, um automóvel”. Foi exímio jogador também do xadrez, e falou sentir-se mais à vontade com o tabuleiro porque “o meio dos jogadores de xadrez é mais simpático que o dos artistas. Estes são completamente confusos, completamente cegos, usam viseira-de-burro”.

Outro ponto fundamental do legado de Duchamp são os chamados readymades. Eles vieram à tona no mesmo período que o francês abandonou a pintura. A denominação não tinha surgido ainda quando, em 1913, a roda da frente de uma bicicleta, posta de cabeça para baixo sobre um banco comum apareceu no atelier do artista. A idéia de colocar um objeto como esse na sala, que encerra uma completa falta de utilidade, agradou muito a Duchamp. Os readymades abalaram a forma como se pensava arte. O artigo não recebia quase nenhuma interferência do artista, como a assinatura e as inscrições que serviam de título - e que mudavam toda a percepção do objeto - e do fazer artístico. Outros readymades, como a “Fonte” (famoso urinol) e o secador de garrafas, causaram desconforto e dúvida. Já perto do final da vida, ele declara: “não tenho muita certeza se o conceito de readymade não foi a única idéia realmente importante saída de minha obra”.

´Eu não vou para Nova York, eu deixo Paris´

Com a Primeira Guerra declarada na Europa, em 1915 os Estados Unidos se mostraram para Duchamp. Lá, ele já era um artista famoso. Em 1913, “Nu Descendo Uma Escada (N°2)” que os apresentou. (Engana-se, porém, quem pensa que os americanos foram favoráveis à obra. Ao contrário. Como em Paris, a pintura foi rejeitada pelo público na exposição Armony Show, momento de visibilidade nos Estados Unidos da produção moderna da arte européia. O único quadro de Duchamp na mostra causou ou furor, ou raiva ou gargalhadas. A comoção foi tamanha, que as pessoas esperavam até 40 minutos na fila). Dois anos antes de chegar em Nova York, escreveu ao amigo Walter Pach, quando anota o desejo de viajar. “Eu não vou para Nova York, eu deixo Paris”. Nova York e Duchamp formaram uma dupla e tanto.

Recepcionado por Pach, Duchamp ficou hospedado com ele alguns dias, até se rearranjar na casa de Louise e Walter Arensberg - iniciando uma amizade de mais de 40 anos. Houve até uma troca valorosa entre Duchamp e Walter. Este se tornou dono de “O Grande Vidro”, nome curto para “A noiva despida pelos seus Celibatários, mesmo” - principal obra de Duchamp, enquanto pagava, por dois anos, o aluguel do francês. Nova York também aproximou Man Ray do artista. Foi ainda importante na construção de uma idéia de democracia que Duchamp não conhecia na França. “Para um francês acostumado com distinções de classe, podia sentir o que uma democracia verdadeira era capaz de fazer” - anota Calvin Tomkins no livro “Macel Duchamp”, talvez a biografia mais completa já feita sobre ele.

Com o frisson causado pelo quadro nos Estados Unidos, a mídia também voltou sua atenção ao autor. Um poeta, que também trabalhava como repórter, Alfred Kreymbourg, assim o definiu: “ele falava numa voz baixa, educada, cheia de humor, matizada em seus intervalos inconscientes por curiosos meios-tons de entusiasmo comedido. As palavras são poucas, as frases são concisas e expressas vagarosamente, mesmo quando usa a língua-mãe”. Tal discrição vai acompanhar muitos dos que com ele travaram alguma relação. Duchamp morreu em dois de outubro de 1968, vítima de uma embolia. As dúvidas dele, porém, continuam por aqui.


...ESTA JAULA FORA DO MUNDO

A frase acima foi escrita por Duchamp a Maria Martins, nome do capítulo na vida do artista que o remete ao Brasil. Os dois se conheceram em Nova York, provavelmente em 1943, durante uma exposição em que as esculturas da brasileira (que usava com freqüência a terracota, o mármore, a cera polida e o bronze como matérias-primas) estavam expostas ao lado dos quadros de Mondrian. Maria era mineira de Campanha, casada com o embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Carlos Martins, e já contava 43 anos quando conheceu Duchamp. Ele, 56.

Talvez o artista tenha se encantado com a beleza dos cabelos negros e os olhos grandes de Maria, ou a intensidade e delicadeza com que levava a vida. Era dinâmica, ao ponto de reinventar a vida daqueles que a cercavam - como a do marido e a do próprio Duchamp. Por ela, o artista chegou a questionar algumas de suas certezas sobre as relações amorosas. Em 1948, quando o marido dela foi transferido para a França, Duchamp sentiu aquele medo da perda, da ausência. Depois da ida de Carlos, Maria ainda esteve alguns meses ao lado do artista, e quando de vez se foi, as cartas de Duchamp mostravam um intenso desejo do reencontro. Chegou a convidá-la a morar com ele, num estúdio em Nova York - pedido que ela declinou. Depois de outras investidas, Duchamp fica resignado: ´não espero mais um milagre. Sinto-me feliz quando penso em você´.

PRINCIPAIS OBRAS - O vidro, a fonte e o artista

Uma exposição com obras de Marcel Duchamp, artista francês que nasceu em 28 de julho de 1887, não causaria entusiasmo ou cólera, arrebatamento ou asco. Não. Duchamp foi responsável pela morte das formas tradicionais de arte, questionando conceitos como museu, objeto, fazer artístico. Por isso mesmo ele não está presente nas instituições de arte nos termos formais -e sim de uma outra forma. Duchamp está, sobretudo, imbricado nas relações, nas diversas discussões sobre arte e numa outra compreensão do ato criativo. Ele destruiu o conforto intelectual de uma época, calcado na mitificação da arte e do artista, este um semi-deus - ao mesmo tempo que fez surgir um mistério. “Pode alguém fazer obras que não sejam obras de arte?”, questiona Duchamp, numa mostra da arquitetura de seu pensamento.

Paralelo

Segundo críticos, o francês só encontra em Pablo Picasso um referencial comparativo em sua importância para a arte do século XX - apesar de muitos jovens artistas apontarem Duchamp como maior influência. Se Picasso produziu, durante cinqüenta anos, um número incrível de obras e metamorfoses, Duchamp se dedicou à pintura não mais que dez anos, período que legou ao mundo cerca de 50 quadros. A partir de então, substitui a “pintura-pintura”, pela “pintura-idéia”. Quem especifica os termos é Octávio Paz, no pequeno livro “Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza” (Ed. Perspectiva, de 2004). No primeiro artigo, Paz traça paralelos entre um e outro artista. “As figurações de Picasso atravessam velozmente o espaço imóvel da tela; nas obras de Duchamp o espaço caminha, se incorpora, e tornando máquina filosófica e hilariante, refuta o movimento com o retarde, o retarde com a ironia”, analisa Paz.

A ironia, aliás, é um dos elementos mais presentes na vida e na obra dele. “Para Duchamp, a arte , todas as artes, obedece à mesma lei: a metaironia é inerente ao próprio espírito. É uma ironia que destrói sua própria negação e, assim, se torna afirmativa” - esclarece Paz. Mais uma vez, é como se Duchamp estivesse em uma espécie de jogo, que, depois de um movimento preciso, espera pela reação do adversário.

Quando ele faz “Nu Descendo uma Escada”, “Triturador de Chocolate”, ou “A Noiva despida pelos seus celibatários, mesmo” (também chamado de “O Grande Vidro”), pensa-se que Duchamp está a se aproximar das máquinas, da automatização pela qual passa a sociedade. Ele mesmo esclarece: “eu estava interessado em introduzir o aspecto preciso e exato da ciência, o que não havia sido feito o bastante, ou, ao menos, não se falava muito. Não foi por amor à ciência que o fiz, ao contrário, foi para desacreditá-la, de uma maneira doce, leve e sem compromisso”. E afirma em seguida: “mas a ironia estava presente”. (As palavras foram retiradas do livro “Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo”, de Pierre Cabanne. Para uma bibliografia sobre o assunto, ver tabela ao lado). O crítico Octávio Paz assim chamaria a esse elemento de Duchamp: antimecanismo. “As máquinas são agentes de destruição e daí que os únicos mecanismos que apaixonam Duchamp sejam os que funcionam de um modo imprevisível - os antimecanismos”, escreve.

O “fazer”, a “coisa”

É comum, na entrevista que Pierre Cabanne realiza com o artista, ouvi-lo dizer “fazer”, para o ato criativo, e “coisa”, para o objeto de arte. Algumas dessas “coisas” chegaram ao grande público - como os readymades, objetos tirados diretamente do cotidiano e tornados obra de arte.

Um dos mais lembrados é a Fonte, o urinol que recebeu a assinatura de R. Mutt. (e até hoje incompreensível para alguns leigos). O “original” data de 1917, mas foi perdido. A réplica que conhecemos é de 1964. Outro marco dos readymades é o quadro em que a Monalisa recebe um cavanhaque, onde se pode ver a inscrição L.H.O.O.Q. Ele chamou muita atenção, especialmente para quem fala francês. O nome do readymade forma um jogo de palavras, que quer dizer algo como: “ela tem o rabo quente”. Uma subversão aos padrões da época: 1919. Os readymades são a exaltação do gesto. “São objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único fato de escolhê-los, converte em obra de arte. Ao mesmo tempo esse gesto dissolve a noção de arte”, analisa Paz.

“La Marieé mise à nu par ses célibataires, même”, ou, em português, “A noiva despida por seus celibatários, mesmo” (tradução usada para fins didáticos, porque em muito pouco se aproxima do original em francês) é considerada uma das obras de arte mais herméticas do século. O título se fecha num mistério, cúmplice das imagens. Para dar início a uma compreensão do quadro, é preciso ter observado com atenção a Caixa Verde, notas de Duchamp sobre o quadro. Lá, ele destaca a importância de ser feito entre duas placas de vidro, que evidencia transparência. E a tinta meio que preserva uma pureza. É como se todo o pensamento do artista estivesse concentrado nele, que em 1923 foi considerado, pelo artista, “definitivamente inacabado”. Mesmo um acidente, que causou rachaduras no vidro, foi compreendido, por Duchamp, como parte da obra.

SUSPENSE - O enigma de Duchamp

SOLON RIBEIRO
Fotógrafo

Duchamp é um enigma e, como todos os enigmas, não é algo que se contempla, mas sim que se decifra. Talvez uma estratégia de jogo, um jogo a serviço do ócio, da liberdade, além da harmonia e da subjetividade, sem ideologia ou moral, descrente dos grandes gestos ou das grandes causas. Sua estética foi essencialmente ética. Antes de tudo viveu e criou em nome da liberdade. Recusou todos os compromissos, da família à profissão, em nome da liberdade e da integridade e da coerência de sua obra e de sua vida.

Uma maneira de entender a obra do Duchamp é sobre o prisma do jogador. Ele vai produzir algumas ações e essas ações não visam a imediatez, não são pro mercado. Duchamp produz algumas ações e no final, você tem o desdobramentos de grandes jogadas, e xeque-mate na estética.

A obra o “Nu Descendo uma escada n° 2” é a primeira dessas grandes jogadas. Em 1912 , uma ação de desconstrução do tempo. A obra é criticada e recusada no Salão dos Independentes em Paris e depois causa escândalo em Nova York no Armory Show - exposição histórica na fundação do modernismo americano. E ele é sempre um estrangeiro, mesmo nos Estados Unidos, aonde já chega como consagrado.

Outra ação certeira é a obra “Fonte” em 1917, um urinol de porcelana invertido, assinado com o pseudônimo R.Mutt. Com este lance, Duchamp livra a estética de todas as suas impurezas, sejam elas a subjetividade, a autoria, ou a técnica. A estética é reduzida a zero.

Duchamp inventa o termo readymade, com esta jogada novos caminhos terão que ser pensados para a arte continuar a ser...

Mas, desde 1912, Duchamp vinha arquitetando uma grande jogada de mestre. “La Mariée Mise à nu par ses célibataires, Même” (“A noiva Despida por seus celibatários, mesmo” ou “O Grande vidro”), lance que encaminharia a arte para uma região depois do saber... A noiva Despida por seus celibatários mesmo, sofre um acidente, e o acaso joga a seu favor.

Eros é vida: surge a persona Rrose Sélavy, um embate entre o masculino e feminino.

Outra jogada anterior a esta é L.H.O.O.Q. (“Ela tem fogo no rabo”), onde Duchamp se apropria do quadro e interfere, colocando bigode e cavanhaque na reprodução da Monalisa de Leonardo da Vinci.

A grande jogada é que ele indicou a possibilidade de mudar o percurso da então “arte” pela não-ação, viver no ócio do gozo. No final você tem toda umas ações que foi se desenvolvendo a partir de uma jogada. E essa última jogada é um grande enigma. Etant Donnés 1° La chute d´Eau/2° Le Gaz d´Eclairage (Sendo Dados: 1 A queda d’Água/2 Gás de iluminação)

Ele produziu pouquíssimas “obras” e a partir dos anos 50 do século XX a arte torna-se Dumchampiana.

Duchamp mudou o percurso da historia, não só da arte, que se expande para todos os campos. Pelo não comprometimento, seja metafísico, político ou estético. Duchamp abriu a janela para o jogo da experiência, da liberdade do não-ser, não-ter, e não-estar.

Rrose Sélavy.

O fluxo ininterrupto

JÚLIA LOPES
Repórter

Muitos têm se debruçado sobre as idéias e as obras que o francês Marcel Duchamp deixou para o mundo. No Brasil não é diferente. As idéias do artista estão, de alguma forma, envoltas ou envolvidas pelas discussões da arte contemporânea. Desde a sua ruptura com a pintura, em 1912, até a exibição póstuma de “A Noiva Despida pelos seus Celibatários, mesmo”, passando pela não-ação, Duchamp exige o enfrentamento.

“No início, Duchamp tenta escapar da pintura como gênero, como se fosse possível fazer pintura sem idéia. Não se pode cometer esse erro, pensar que a idéia na pintura é inaugurada com Duchamp. Mas ele coloca uma nova perspectiva da questão. Como se fosse o número 7 do dado. Duchamp propõe o número 7”, coloca o artista plástico Waltércio Caldas, carioca com passagem pelos principais museus do país. Ele aponta as mudanças que, depois de Duchamp, a relação artista-espectador passou a ter. “Duchamp está entre o que o artista quer fazer e não consegue e o que ele não tinha consciência que poria no trabalho e que o trabalho acaba tendo”. Ele continua: “a arte estará se modificando constantemente. Duchamp compreendeu esse infinito”.

Para a curadora Lisette Lagnado, que já assumiu espaços como a 27a Bienal de São Paulo, “o melhor jeito de lembrar de Duchamp, após tantas experiências, da arte à anti-arte, ainda é sua visão corrosiva da instituição da arte”. Lisette acredita que o público leigo já esteja acostumado a ver readymades, ao mesmo tempo que o conceito original se esvaziava.

Quanto à presença de Duchamp na arte brasileira, a curadora afirma: “A arte brasileira absorveu diferentes aspectos do legado de Duchamp. Regina Silveira fez citações na sua série “Jogos de Arte” (1977) e em outras, usando imagens hoje indissociáveis do artista, como a roda de bicicleta sobre um banquinho. Waltércio Caldas propõe um raciocínio ativo da parte do espectador, um esforço maior que a mera contemplação. Nelson Leirner talvez seja aquele que “encarnou” seu espírito iconoclasta, aquele que também fez o questionamento mais contundente do sistema da arte, apresentando um Porco empalhado (1966) para um juri e depois exigindo explicações a respeito da seleção. Esses artistas fazem parte da primeira geração, no Brasil, que realmente levou Duchamp a sério”.

AMIZADE E ENFRENTAMENTO - Louise Duchamp e Marcel Bourgeois

O crítico e curador Paulo Herkenhoff, em suas pesquisas, descobriu um Marcel Duchamp desenhado por outra artista plástica: Louise Bourgeois

PAULO HERKENHOFF
Crítico e Curador

Louise Bourgeois e Marcel Duchamp desenvolveram uma amizade discreta quando se conheceram em Nova York nos anos 40. Em 1945, organizaram uma exposição de publicações clandestinas da resistência francesa. Ele se interessava pela obra dela. Juntos foram investigados pelo FBI sob o MacCarthismo. Bourgeois fala de Duchamp com afeto, mas não como mito. Recentemente, Stan Douglas fez um duplo retrato de Louise como Duchamp e vice-versa. A seguir, Bourgeois fala sobre Duchamp (com indicação da fonte bibliográfica são indicadas ao final dos parágrafos):

“Marcel Duchamp e eu caminhávamos quando vi um casa de caramujos junto, copulando. Eu os empurrei para a quina da calçada e, com os pés, esmaguei-os no chão. Duchamp me disse: ‘Por que esta agressão? Não é necessário ser tão emocional’”.

“Os artistas dos anos 80 pensam que podem imitar. Se Duchamp ou Beuys fizeram, eu também posso. Isso não é verdade. Esses dois mestres permitiram a desconstrução. Isso não leva em conta o catalisador que tem que estar lá. É a morte da emoção. Você não pode fazer um objeto simbólico se você não tiver interesse profundo”.

“Breton e Duchamp me tornavam violenta. Eram muito próximos de mim e eu objetava a eles violentamente - sua pontificação. Já que eu fora uma criança fugida, figuras paternais me levavam para a direção errada. O Cego guiando o Cego se refere aos homens velhos que lhe levam pro precipício”. (Meyer-Thoss).

“Duchamp não era bem um amigo. Era um inimigo porque era exasperador e gostava de demolir qualquer projeto - e isso é muito refrescante. [...] Os homens mais velhos que mencionei poderiam ter sido meu pai ou avô. Já que tive muita dificuldade com meu próprio pai, que não sabia se comportar, eu sempre busquei pais úteis e decentes, ainda busco”. (Collary).

“Duchamp veio a minha primeira exposição. Estava jogando xadrez ali por perto. Ele disse ‘Louise, não entendo o que afinal você está fazendo!’ [...] Ficou no canto muito perplexo. Estava interessado e certamente não era hostil, mas era muito formal pra ele. Não havia tema e o conteúdo emocional era muito próximo para lhe trazer conforto” (Pels).

“Duchamp não confiava em suas emoções. Esforçava-se muito para aparentar tranqüilidade”.

“Acho que Duchamp, se você fizesse essa pergunta a ele [sobre confusão sexual na obra], ele teria dito: ‘Bem, por que falar de sexo? Isso é importante?’ Ele não teria admitido que fosse terrivelmente importante. Mas era muito perspicaz e as pessoas aceitariam esta resposta. Bacon, se lhe fizessem a mesma pergunta, teria dito: ‘Meu Deus, estou morrendo dele! Estou morrendo de paixão demais!’ Se perguntasse a Louise Bourgeois: ‘Sexo? O que você quer dizer, ele não existe’” (Melrod).

“Sentia que Marcel Duchamp sempre jogava com a verdade. Ás vezes é mais interessante negar a verdade. Duchamp era um encantador. [...] Marcel Duchamp gostava de brincar com as pessoas … ele pregava, enganava as pessoas fazendo crer que era um gênio” (Herkenhoff).

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