sexta-feira, 21 de novembro de 2008


DAS NOÇÕES DE DESLOCAMENTO E DESLOCAÇÃO E
SUAS RELAÇÕES COM A ARTE (1)
(PARTE I)

Fabiana de Moraes é professora de História da Arte e Estética e curadora. Mestre pela
Université Paris I e doutoranda da Escola de Comunicação da UFRJ.

“A primeira deslocação é a queda fora do Paraíso. Não somente no sentido que os primeiros homens, na narrativa da Gênese, foram expulsos de um lugar único e perfeito, mas no sentido que eles entraram num espaço em que reina a divisão dentro/fora. Eles entraram num espaço compartilhado, isto é, no espaço tal como ele será para os homens a partir de então.” Benoît Goetz

"Verdadeira ou falsa, a aisthesis modifica imediatamente a anima [o pensamento-corpo], deslocando sua disposição para o bem-estar ou o mal-estar." J.-F. Lyotard

A epígrafe de Benoît Goetz, retirada de um texto em que o autor francês pensa o conceito de deslocação em relaçao à arquitetura, nos serve de ponto de partida para pensar a origem de nossa relação com as noções de deslocamento/deslocação. Seguindo o raciocínio de Benoît Goetz, podemos ainda estender esse primeiro momento de incidência dessas noções para um outro momento, não menos bíblico e exaustivamente representado na história da arte, que é a Anunciação, a encarnação de Jesus na ‘arquitetura’ de Maria. Esse deslocamento do ente divino para o corpo e a vida terrenos, do espírito do filho de Deus para o corpo de carne da Virgem, é parte constitutiva de nosso imaginário.

O termo deslocamento e suas vastas conceituações, que aqui transformamos em objeto de estudo – nos permitindo estendê-lo ao conceito de ‘deslocação’(2)– permeia o campo da Estética, hoje, de forma evidente. Deslocamento indica mudar de direção, desviar, desarticular, afastar, tirar do lugar, transferir, decompor, desconjuntar, desarticular.

A noção de deslocação evoca distanciamento, perturbação e desagregação do sentido, ela pode dar origem a novas ordens discursivas, a novos regimes de visibilidade. São essas novas ordens discursivas e regimes de visibilidade que interessam, particularmente, à presente análise.

Fala-se, hoje, em Estéticas do Deslocamento, que se relacionam tanto às artes visuais como à arquitetura, ao urbanismo, ao espaço digital, à economia etc. Isso nos mostra o quanto esse conceito permeou o pensamento ocidental até se tornar, hoje, objeto de análise das ciências humanas e das artes visuais, em particular. Se tivermos de delimitar situações em que podem ser percebidas manifestações e transformações operadas por essas noções, podemos listar alguns pontos para essa incidência, como veremos a seguir num breve histórico, tendo como ponto de partida a Modernidade, que situamos, aqui, na segunda metade do século XIX.

Se pensarmos no conceito de deslocamento e suas interfaces com a história da arte, podemos delimitar alguns momentos de significativa importância para a leitura que se pode fazer deste mesmo conceito, quando relacionado a propostas contemporâneas da arte.

Para começar, tomamos o termo derivado ‘deslocação’, que significa inicialmente decomposição, e que nos sugere um momento particular marcado pela produção de Eugène Delacroix que, ao decompor a mistura das cores de sua própria paleta, conscientemente tornou possível a reflexão, na pintura, via decomposição, do próprio mecanismo de visão e de percepção das cores. Tempos mais tarde, os experimentos impressionistas dão continuidade a esse gesto inaugural do artista francês.

Nos permitimos citar um outro momento do século XIX, esse século que em seus primórdios é marcado pelo nascimento da fotografia e pelo aprimoramento de aparatos ópticos. Nesse preciso momento, Édouard Manet elabora, na pintura, um mecanismo que atuará na relação espectador/obra de modo determinante. Manet, manifestamente, provoca o olhar daquele que se encontra diante de suas pinturas, de modo a induzir um deslocamento daquela posição fixa a qual a pintura clássica destinara o observador, por tantos séculos.

Michel Foucault assinala essa transformação do olhar e o conseqüente deslocamento do espectador diante da pintura, numa conferência realizada em Tunis, nos anos 70. O filósofo francês afirma que Manet cria o quadro-objeto, aquele em torno do qual o espectador pode circular, se deslocar. Para Foucault, o caráter subversivo em relação ao regime clássico de visibilidades, presente na poética de Manet, é aquele que tornará possível a arte de hoje. Para ele, ainda, Manet é o primeiro pintor moderno, o pai da Arte Moderna, personagem fundamental da Modernidade. Mas de que maneira a Modernidade vai tratar o termo deslocamento? Vejamos alguns exemplos.

Na poesia, Mallarmé libera o signo de sua função tradicional: aquela que atribui, que nomeia. Os signos podem operar no espaço branco do suporte literário como materialidades, como elementos visuais, em relação de atração e confronto com a semântica. A poesia libera-se e desloca-se para outros rumos, jamais experimentados. O signo é desenho, é forma, é espessura, cor, elemento. O poema é mais que mensagem, é suporte, é espaço, fundo e superfície para uma nova possibilidade poética.

A psicanálise também nasce com a modernidade, com esse novo olhar, com essa nova relação com o mundo. Na psicanálise, o termo deslocamento evoca um mecanismo de defesa do Eu, a separação entre a representação e o afeto, o isolamento desses dois termos determinantes da pulsão. Se o Eu não sabe como tratar um determinado problema, ele desloca o problema para uma outra representação. A representação é o reconhecimento da forma do objeto de interesse e o afeto seria uma espécie de tradução. A pulsão se exprime, então, no âmbito psíquico, pelo afeto e pela representação. Trata-se de um mecanismo da neurose, um mecanismo de defesa, que desloca o valor e, finalmente, o sentido do problema em questão.

Mas o que acontece, de fato, quando a arte se apropria desse mecanismo de defesa e passa a deslocar o valor e o sentido de questões? Não é essa um das atribuições que podemos conferir ao gesto inaugural de Duchamp?

O deslocamento do homem europeu, movido pela sede imperialista de exploração de culturas de regiões como a Oceania, a África e a Ásia, está na origem de um olhar curioso e inspirado que permeia boa parte das investigações pós-impressionistas, para causar efeitos jamais vistos em projetos de movimentos vanguardistas do início do século XX.

Afirma-se sobre as vanguardas que um dos primeiros deslocamentos que estas pretenderam efetuar foi aquele de trazer a arte para a esfera da vida, deslocar seu sentido, até então vinculado a uma elite de tradição erudita, clerical, nobre, abastada, ou burguesa. Esse deslocamento do estatuto da arte e de sua função – embora hoje criticado por ter sido rapidamente assimilado pela lógica de mercado – foi efetuado das maneiras mais diversas pelas vanguardas européias.

O deslocamento, como movimento dinâmico essencialmente ligado às tecnologias da modernidade e à velocidade maquínica, é objeto das empreitadas futuristas; o deslocamento e a decomposição do espaço clássico, que evidenciam novas possibilidades para a observação de um objeto, são fundamentados pela investigação cubista. O gesto de Duchamp, que desloca um objeto de uso cotidiano e o esvazia de seu sentido original, conferindo-lhe o estatuto de objeto artístico, traz consigo um significativo deslocamento da própria questão: O que é arte?

No Pós-guerra, um deslocamento – agora geográfico – transformará o sistema da arte. Os EUA saem da guerra e tornam-se centro cultural mundial. Nova Iorque é residência de uma nova geração de artistas e de críticos que desenvolvem trabalhos que marcarão a entrada da arte no cenário, então, pós-moderno. Essa nova poética baseia-se num deslocamento físico, do próprio corpo do artista em processo – o caso de Pollock – como aquele que produz resíduos, que deixa rastros, traços de passagem. O processo é o foco de concentração do artista, assim que os gestos de liberdade que deslocam a relação da arte com o projeto, o pré-concebido, colocando-a em relação direta com o 'inesperado', com o inconsciente já liberado pelas práticas surrealistas, por um corpo que, ao poucos e cada vez mais, torna-se lugar da arte.

Em seguida, num contexto mais amplo, temos uma série de transformações que marcam a passagem da sociedade industrial, moderna, a uma sociedade pós-industrial, em que os deslocamentos aparecem sob novas configurações. A estética, como experiência compartilhada por todos e essencialmente política se oferece em espaços comuns, públicos, compartilhados. A arte estende e entrecruza suas linguagens, desloca-se em permanência, cria novos lugares para o ver e o dizer, como veremos a seguir. (Continua).

Notas
(1) O presente texto foi apresentado na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em ocasião da exposição Acessos Possíveis, de curadoria de Iole de Freitas, em 29/11/2006.
(2) “Deslocação”, termo encontrado igualmente em Inglês e em Francês, como dislocation

Nenhum comentário: