DAS NOÇÕES DE DESLOCAMENTO E DESLOCAÇÃO
E SUAS RELAÇÕES COM A ARTE (parte II)
Fabiana de Moraes é professora de História da Arte e Estética e curadora.
Mestre pela Université Paris I e doutoranda da Escola de Comunicação da UFRJ
“Verdadeira ou falsa, a l’aisthesis modifica imediatamente a anima [o pensamento-corpo], deslocando sua disposição para o bem-estar ou o mal-estar.”
J-F. Lyotard
A proposta de Pollock integra uma série de transformações que ocorreram imediatamente após a Segunda Guerra, abrindo espaço para interrogações sobre a função da arte, a partir daquele momento. Como exemplo, em 1966, Adorno se afirmva partidário de criações artísticas que fossem refratárias à ‘indústria cultural’, propondo uma ‘autonomia radical’, que não mais levasse em consideração as necessidades do mercado, nem as necessidades ‘comerciais’. Essa reflexão de Adorno, ainda que integre o contexto específico das discussões acerca da arte ‘Pós-Auschwitz’, é de grande alcance, se pensamos a série de movimentos que ocorrem nessa época: propostas artisticas que visam investir no mundo, de maneira concreta ou metafórica (1), expandindo-se em direção à cidade, sob forma de intervenções, performances e happenings, em que o corpo do artista passa a servir de lugar, de suporte, ainda que efêmero, para a arte. A relação espectador/obra assume novos aspectos quando a arte sai do espaço habitual dos museus e galerias para acontecer também no espaço urbano, na paisagem, na natureza. Certamente, podemos situar esse momento numa dinâmica de ‘autonomia radical’ da arte em relação ao próprio sistema que, então, a sustentava; uma interrogação de seus preceitos, de seus limites físicos e conceituais, de maneira distinta, mas filiada ao gesto duchampiano do início do século XX.
Os limites do ateliê tradicional são, assim, pulverizados, os espaços de exposição interrogados. Desta maneira, a paisagem, a natureza, o espaço natural, de modo geral, sua geologia, seus aspectos fisicos e suas leis internas tornam-se igualmente lugares em que a arte passa a existir, como objetos de seu questionamento, matéria de seu fazer.
A Land Art, Smithson : da natureza como sintaxe
O termo Land Art surge no final da década de 60, para designar ações que visam utilizar ou transformar um lugar natural, geralmente em grande escala. Assim , uma de suas significativas conseqüências é o trabalho do artista fora dos circuitos dos museus e do mercado de arte, num primeiro momento – fato que já havia ocorrido com o surgimento das primeiras performances e happenings, no final da década de 50, notadamente a proposta de Allan Kaprow. No que concerne à Land Art, alguns nomes tornaram-se referência, e assim citamos Heizer, Oppenheim, Walter de Maria, Richard Long, Christo e, particularmente, Robert Smithson. Este último, além de sua importância relativa às intervenções na natureza, foi um criador de conceitos, dentre os quais o de dislocation, ou deslocação, que se pode compreender como algo originalmente ligado à visão, mas que evoca igualmente descentramento, fragmentação, decomposição.
O trabalho de Smithson abrange a construção de uma teoria estética, paralela aos projetos artísticos, e que pensa a arte em estreita relação com o território (urbano ou natural). Não podemos visitar sua arte sem levar em conta o período que se insere. Intregando uma série de propostas oriundas de diversas esferas da cultura contra os poderes institucionais. Smithson interroga a urbanização massiva nos EUA, a arte de seu tempo, a história, os monumentos, as diversas culturas, as noções de tempo e de espaço e nossa percepção dessas noções.
Em 1961, o artista passa três meses em Roma, onde tem contato com a história de maneira singular : - Antes da viagem, eu tinha apenas afrontado a arte nova-iorquina. De modo que essa viagem a Roma foi um encontro com o pesadelo da história européia. Essa viagem, acompanhada pelas leituras de T.S. Eliot, Willian Burroughs e Ezra Pound, entre outros, foi, como afirma o artista, uma espécie de travessia pela fachada do catolicismo, passando pela Renascença, rumo às “estruturas arquetípicas”, as “necessidades primordiais”, relacionadas às profundezas do inconsciente – não esqueçamos da importância de leituras de textos de Freud e Jung para Smithson. A partir desse percurso, o artista buscou decifrar as características da arte européia do período anterior ao modernismo, “para escapar à visao formalista desse último”.
Em 1966, Smithson cria seus Mapping Dislocations, trabalho estreitamente relacionado aos conceitos de site/non-site (lugar/não-lugar) e de deslocamento. Afrontando as dimensões da paisagem, sua arte transforma as condições de visibilidade das obras. Na galeria ou no museu, Smithson propõe uma obra fragmentada, que passa por uma ‘deslocação’, ou decomposição; uma obra parcial que caracteriza os seus non-sites. O espaço de exposição torna-se um não-lugar, um entre-dois determinado igualmente por uma não-visão (non-sight). Com a criação de um dispositivo composto por texto, mapa e fragmentos de lugares, o artista joga com o conceito de representação, ou melhor, cessa toda possibilidade de representação, criando uma espécie de ‘geologia abstrata’, termo por ele criado.
Quando Smithson observa o crescimento massivo dos subúrbios e zonas industriais americanos, emprega os termos deslocação e descentramento para se referir a uma mudança drástica das relações com as noções de linearidade e centralidade, de ausência, no mundo contemporâneo, do senso de território. O conceito de entropia, mais uma vez, é aplicado. “A expansão urbana e infinito desenvolvimento residencial do pós-guerra contribuiem para a arquitetura da entropia” e essa entropia “é a condição que conduz a um equilibrio gradual”, explica. Para Smithson, que pensa a natureza também como território, a paisagem urbana se torna uma espécie de frase pontuada: seus elementos, torres, chaminés, fumaças, luzes coloridas são pontuações dessa frase. Smithson vai mais além em sua ”percepção sintática” do território, que o leva ao seguinte raciocínio: não somente a arte é artificial, como também toda a nossa percepção da natureza e do mundo. Lembramos que para Delacroix a natureza é “apenas um dicionário que fornece as entradas e nada mais”. Ao contrapormos a definição de Delacroix àquela defendida por Smithson, torna-se evidente o grau de transformação da própria prática artística e suas relações com a natureza, num espaço de um pouco mais de um século.
Para o artista, a natureza é algo de inacabado, na qual ele tem o direito de intervir, de integrar seu processo de transformação. Smithson utiliza praticamente objetos encontrados nos locais em que investe para criar seus Earthworks (obras de terra). Dentre elas, a Spiral Jetty tornou-se a mais célebre. A obra nasce em 1970 e se trata de uma faixa de 5m de largura e 500m de extensao, composta por toneladas de rochas basálticas, desenhando uma espiral no Great Salk Lake (Grande Lago Salgado) do estado do Utah, nos EUA.
Em 1972, uma brusca elevação das águas do lago fazem a obra desaparecer. Ela passa, a partir de então, a existir em suporte fotográfico ou fílmico (Smithson realizou um filme sobre a Spiral Jetty). Em 1973, Smithson morre tragicamente num desastre de avião aos 35 anos, quando trabalhava no projeto Amarillo Ramp (Rampa de Amarillo), no Texas. Quase três décadas mais tarde, a Spiral Jetty foi elevada à superficie do lago e pode ser novamente visitada.
A referência a Robert Smithson na obra de Cyprien Gaillard
Robert Smithson é a fonte inspiradora das propostas de Cyprien Gaillard, jovem expoente da arte francesa atual que, entre vandalismo e estética minimalista, romantismo e Land Art, interroga o rastro deixado pelo homem na natureza.
Desniansky Raion (2007,
A primeira parte do vídeo mostra uma briga entre duas gangues de hooligans no estacionamento de um conjunto habitacional do subúrbio de São Petersburgo, filmada de um edifício das proximidades. Azuis contra vermelhos, alguns usando luvas brancas, os dois grupos avançam, um em direção do outro, organizados, antes de se decomporem por efeito do choque, reconstituindo-se em seguida para um novo assalto. Evocando uma cena de batalha de afresco medieval ou uma pintura de história, o desencadeamento da violência, ao mesmo tempo selvagem e codificado, repulsa tanto quanto fascina.
O segundo quadro é um plano fixo da fachada de um conjunto habitacional do subúrbio parisiense, sobre a qual acontece um espetáculo que combina som, luz e pirotecnia. Essa mise en scène grandiosa, normalmente reservada aos monumentos históricos, termina abruptamente com o desabamento do edifício. A visão hipnótica desse monolito, sublimado pelos fogos de artifício, antes de ser reduzido a poeira, soa como um enterro em grande pompa das utopias arquitetônicas modernistas.
Enfim, a última parte explora Desniansky Raion, bairro da periferia de Kiev, filmado sem autorização de vôo de um ultra-leve que flutua perigosamente à mercê do vento, oferecendo uma visão ao mesmo tempo cinematográfica e amadora dos lugares. Elevando-se numa paisagem nevada e melancólica, a multidão austera de conjuntos habitacionais é inicialmente desordenada, antes que apareça nesse caos de concreto um grupo de torres organizadas num círculo perfeito, lembrando o monumento megalítico de Stonehenge, na Inglaterra.
Filmadas ilegalmente ou adquiridas por vias paralelas, as três partes do vídeo são testemunhas de uma aproximação sem pudores das imagens e de seu estatuto. Parte integrante da obra, a trilha sonora do músico KOUDLAM, entre referências clássicas e sonoridades contemporâneas, adiciona-se ao caráter romântico do conjunto.
A da obra de Cyprien Gaillard traz à discussão pública questões relativas às relações entre as ações humanas e natureza, arquitetura, arte, e suas implicações para a organização do espaço urbano, para a formação cultural de um povo, para a configuração do tecido social constituído por indivíduos de uma mesma comunidade. Utilizando conceitos como os de “ vandalismo”, “caos”, “precariedade”, entre outros, Cyprien Gaillard interroga uma certa idéia do Belo encontrada em paisagens naturais que sofrem interferências e ações humanas. Sua proposta dialoga com trabalhos desenvolvidos hoje, no Brasil, por Thiago Rocha Pitta, Chang Chi Chai, Eduardo Srur, Lourival Batista, Imaginário Periférico, Grupo Poro, Arte/Cidade, Grupo Urucum, Grupo de Interferência Ambiental, dentre outros projetos de arte contemporânea que compõem o cenário nacional.
As noções de deslocamento e deslocação sugerem um importante e denso trabalho sobre a estética contemporânea. Ambos os conceitos indicam um número infinito de casos a serem considerados e analisados de acordo com suas especificidades. Entretanto, preservadas as singularidades, podemos entrever, a partir dos conceitos aqui abordados, um novo regime estético, uma nova possibilidade de existência da arte, de seu prularismo de linguagens. Esse novo estado de coisas é sem dúvida refrátario a classificações, a rótulos, a denominações. A permanente mobilidade, própria a essa nova configuração estética, nos reúne nos não-lugares do próprio sentido, criando novas maneiras de experimentar a arte, deslocando, desviando, deslegitimando.
Nota
1. Esse trabalho nasce das férteis discussões em torno de trabalhos dos artistas Célia Cotrim, Cleone Augusto, Cristiane Geraldelli, Esther Bloch, Frank Ostrower, Gabriela Noujaim, Ivani Pedrosa, Lídia Peychaux, Luciana Guimarães, Marcio Zardo, Marilda Rezende, Marília Jaci, Sonia Távora e Theresa Macintyre, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no segundo semestre de 2006.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor. Dialectique négative. Paris, Payot, 1992.
“Ateliers – l’artiste et ses lieux de création dans les collections de
Robert Smithson: The Collected Writings, editado por Jack Flam, publicado pela University of California Press, Berkeley, California, 2nd Edition 1996, disponivel em : http://www.robertsmithson.com/essays/entropy_and.htm.
Textos online
Smithson: http://www.robertsmithson.com/
http://stephan.barron.free.fr/technoromantisme/bellon_helene/index-h.html
http://territoiresinoccupes.free.fr/art/partie222.html
COBEL, Laurence. « Robert Smithson : une cartographie de l’art » http://www.atopia.tk/index.php?option=com_content&task=view&id=21&Itemid=57
Periódicos
Du Land Art sauvé des eaux - A la redécouverte de la “Spiral Jetty”, Courrier International, n° 644, 6 de março de 2003, por John Dickie. Artigo originalmente publicado no The Independent on Sunday. http://www.courrierinternational.com/article.asp?obj_id=4813
THIBAULT, Isabelle. Land Art, mythe et limites du territoire, dynamique du regard. Publicado na revista online Edit, n°3, “Territoires/Territoires”, março de 2006. Disponivel em: http://www.edit-revue.com/index.php
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